Plural - da delicadeza à força




Meninas que nasceram com a mesma perspectiva: não ter perspectiva. Na roça, na lida da casa, a fumaça do fogão caipira impregnada nos cabelos, as roupas simples, o trabalho pesado, cuidar dos irmãos, ser deixada de lado pela família. Crianças que nasceram pra servir os pais, o resto da família, os homens e, se Deus quiser, o marido. Tão bem cuidadas como uma moita de chuchu que deu no canto da cerca. Marias.
E a história de uma dessas meninas que foi parar no teatro com a peça “Plural”, da Cia. Nu Escuro. Maria é mais uma criança no meio de vários irmãos, mora na fazenda da avó, órfã de pai, sem perspectiva de estudar, relegada aos trabalhos da casa e a deixar as melhores partes da comida pros irmãos-homens. Preterida.
Maria é uma frágil e linda boneca feita de crochê, assim como seus parentes. Uma mãe acalentadora, mas passiva; uma avô autoritária; um padrasto ignorante que arrasta parte da família pra vida dura da cidade; e os irmãos, inúmeros irmãos.
O sofrimento da menina da roça é contado em várias vozes. Vozes de Marias de verdade, que um dia nasceram e cresceram na dificuldade. São relatos sonoros de mulheres que tiveram uma vida dura. E assim a história vai sendo tecida, entre o real e a ficção, entre os bonecos e gente de carne e osso.
E quem nunca ouviu histórias como a de uma menina que não sabia o que era menstruação e achou que estava morrendo? Ou de uma criança que comeu algo escondido e coo castigo teve que comer ainda mais?
Inclusive essa é uma das melhores cenas do espetáculo. A avó de Maria diz a ela pra não comer as bananas que estão em cima da mesa. Mas assim que a idosa sai, a menina as vê dançando na frente dela, tentando, convidando, quase que a obrigando a comer: “Minha casaca é simples, mas o conteúdo é sensacional”. E nessa hora, os manipuladores não são apenas manipuladores, mas agentes ativos do espetáculo. Dançam, cantam, interagem com os bonecos. Seduzem o público.
Além dos bonecos, “Plural” também é uma orgia visual, com suas projeções e luzes. Sua quermesse de bonecos iluminados. Seus carros velozes vindos do passado só pra transitar no cenário e amedrontar a Maria. Um casamento apurado entre cinema e teatro.
O espetáculo é como muitas Marias por aí, a primeira vista, sensível, delicado. Mas com o tempo nota-se a força e a intensidade.


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    Goiânia, Goiás, Brazil
    Jornalista por formação, especialista em Filosofia da Arte. Trabalho em TV, mas sempre ligada ao Jornalismo Cultural, com ênfase em Teatro e Cinema.

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